sábado, 12 de dezembro de 2020

Guardador de árvores

"Esta já foi a minha casa:
sentaram-se à minha sombra,
beijaram-se à minha sombra
e até tatuaram o meu corpo
com nomes, datas, corações.
Outros leram-me, sorriram
e alguns se acercaram do meu tronco
para ouvir a euforia dos pardais.
Agora a névoa arde, como arde,
nos meus ramos despidos, sufocados.
Agora sou uma estátua provisória
atacada por um mal que não conheço
nesta praça envolta em fumo e em ruído,
e o ar doente da cidade
pesa como chumbo sobre mim.
Arrancaram e levaram (para onde?)
os meus velhos companheiros de infortúnio;
como eles sou madeira sem valia,
apenas uma sombra dispensável - 
e as aves, como folhas no Outono,
desertaram para sempre dos meus ramos."

"Lamento do último plátano de uma velha praça do Porto", in Guardador de árvores / João Pedro Mésseder / il. Horácio Tomé Marques. Porto: Trampolim, 2009.

sábado, 28 de novembro de 2020

Guardador de árvores

 
A temática ambiental, ou a sua designação num sentido mais estrutural, a Ecoliteracia é uma das áreas essenciais para a formação de leitores, mas também no seu sentido mais genérico, a da formação dos valores nas pessoas e assim na sociedade. Tema essencial não só porque faz despontar o valor daquilo que está para lá de cada um, o espaço natural, como afirma o outro, aqui em dimensões várias como algo em que cada um se materializa como uma relação. 
 
A natureza e a questão ambiental têm sido desvalorizadas há muitas décadas e se agora são incentivadas, é pela visibilidade do desastre natural a que a sociedade contemporânea trouxe até nós. É essencial fazer uma aproximação educativa capaz de rever esses efeitos negativos, mas também e sobretudo pela ligação essencial ao coração das coisas, à respiração e reconhecimento do papel de cada um e da sua própria felicidade.  
 
Guardador de árvores de João Pedro Méssederé uma das obras para um público infantile juvenil a trazer esses valores da Ecoliteraia. Um álbum de louvor às árvores, como se elas próprias na sua dádiva encaminhassem os sonhos das palavras para ideias novas, aprendizagens de futuro. As folhas, os ramos, a luz ente os espaços do dia nas imagens para a nossa gratidão pelo natural e pelo silêncio das árvores, como um anjo depositado nas coisas. Guardador de árvores é um livro de poesia para a iniciação nesse mundo de delicadeza e agradecimento pelo valor das coisas essenciais.

Guardador de árvores / João Pedro Mésseder / Il. Horácio Tomé Marques. Porto: Trampolim, 2009.

sexta-feira, 6 de novembro de 2020

A minha primeira Sophia

 
"Há muitos e muitos anos, em 1862, nasceu numa ilha da Dinamarca um menino a quem puseram o nome de Jan Henrik Andresen. A Dinamarca é um país do norte da Europa, com Invernos escuros e frios e florestas de pinheiros e bétulas. Jan era um rapaz forte e corajoso, que sonhava ser capitão de um navio e viajar para longe. Queria conhecer lugares mais quentes onde o sol brilhasse e, um dia, decidiu partir."

Assim começa, A minha Primeira Sophia de Fernando Pinto do Amaral, um livro maravilhoso que consegue ser uma biografia de Sophia integrando a sua vida com excertos de algumas das suas obras para o público infantil e juvenil. 

Livro que consegue transmitir de uma forma encantadora aquela que foi a vida de Sophia, o seu próprio imaginário feito de ideais preenchidos pelo encanto pela natureza, como o mar e as florestas. Livro que constrói os lugares de Sophia, onde ainda descortinamos o significado da palavra saudade, o valor da poesia na vida diária e o valor da nobreza, como um sentido para a própria vida e para a relação que devemos ter para com os outros e o mundo. 

Livro que nos fala da memória, dessa lição dada pelo professor Cláudio no Rapaz de Bronze, e de como histórias encantadoras e belas alimentam a nossa fantasia e como nos fazem estar atentos ao mundo, à sua beleza e também às formas injustas que observamos tantas vezes.  Livro que abre uma leitura plástica sobre um universo feito de animais, pessoas, flores, "brancos pavores", na procura da beleza das coisas.

Livro que Fernanda Fragateiro soube ilustrar de um modo também encantado e que só por si é uma outra história que acompanha a narrativa de um livro feito de beleza e que é mais do que um livro. É um objeto artístico que se pode admirar para compreender aquilo que foi uma vida de enigmas e de palavras e ações acima das palavras para retirar do mundo o caos e compreender a manhã inicial das coisas.


A minha primeira Sophia / Fernando Pinto do Amaral ; il. Fernanda Fragateiro ; rev. Clara Boléo. - 2º ed. - Alfragide : D. Quixote, 2000.

sábado, 31 de outubro de 2020

Pó de estrelas

                                                                  Buracos Negros

"As estrelas também gostam de brincar
às escondidas
A maioria das vezes escondem-se umas atrás das outras
ou nas imediações de um quasar
Mas não há melhor lugar
para uma estrela se esconder
que num buraco negro
Elas vêm as outras
e ninguém as consegue ver"
 
 
Pó de estrelas é um livro de Jorge Sousa Braga que nos devolve essa ideia que Joni Mitchel um dia cantou em Woodstook e que Carla Sagan comprovaria como correcta. A de que somos feitos de estrelas, de um pó de cometas em viagem pelo espaço. Pó de estrelas que nos devolve o nosso rosto revestido dos sinais dos planetas e das estrelas que connosco habitam um universo, quase desconhecido e fascinante de possibilidades. Cristina Valadas ilustrou o livro coma utilização de técnicas de colagem dando cor e textura a este pó de estrelas que compõe um universo, o nosso.

"Buracos negros", in Pó das Estrelas / Jorge Sousa Braga, Il. Cristina Valadas. Lisboa; Assírio &A Alvim. 2004.

domingo, 18 de outubro de 2020

A árvore generosa

A Árvore generosa é um título escrito em 1964 e que se tornou um clássico a tratar a questão ambiental, ou seja a relação do Homem com a Natureza. É um livro que se nos apresenta com pouco texto e que nos conduz muito pela ilustração para nos dar uma mensagem simples e forte. A da generosidade da Natureza concedida ao Homem. 

 A Natureza está aqui personificada na figura de uma criança, de um menino que cresce. É a partir de uma entrega sem condições da árvore a um menino que nos surgem diferentes temáticas. A Natureza é a mais evidente, mas também as questões do tempo, a amizade, o crescimento e as escolhas de vida e o modo como respondemos aos desafios com que todos vamos sendo confrontados. Voltando aos temas sem dúvida que ela nos conduz à generosidade da Natureza em confronto com a mesquinhez do Homem.

 Nessa condução pela generosidade vimos como os desejos são muitas vezes ausentes de afecto, descomprometidos com uma sinceridade genuína face aos outros, neste caso face à árvore. No fim a obra coloca-nos um outro tema essencial, o do amor incondicional, dos seus perigos, da sua pertinência para a sobrevivência de algo. Resta uma última pergunta. Deveria a árvore amar tão incondicionalmente a ponto de se esquecer de si própria de um modo tão substantivo? 

A obra A árvore generosa levanta questões muito relevantes. Em primeiro lugar a questão do valor da Natureza e o que ela dá generosamente à espécie humana. Relacionado com esse tema está o tempo, o crescimento, as escolhas de vida. A generosidade da árvore é possível ser transposta para a vida humana? É possível alargar esse rio de possibilidades até a um fim que signifique quase a sua inexistência? Afinal o que pode ser um amor incondicional e, como ele sobreviver nessa generosidade sem fronteiras? No fim resta uma pergunta, deveria a árvore amar tão incondicionalmente? A obra é de facto um título pioneiro em muitos aspetos e é nesse sentido um livro que em diferentes gerações pode trazer um questionamento substantivo a quem a ler.  Se A árvore generosa é evidentemente uma bela história consegue igualmente chegar a um patamar mais elevado,o de fazer um questionamento e o de atingir um sentido de educação ecológica, aspetos tão necessários na educação literária e na formação da cidadania.

 A árvore generosa / Shel Silverstein / A árvore generosa. Figueira da Foz: Bruaá, 2011.

sábado, 10 de outubro de 2020

A viagem de Djuku

 

"No exacto momento em que parte, Djuku apercebe-se de que é a primeira vez que deixa a sua aldeia.
Desde o seu nascimento até hoje, Djuku viveu sempre rodeada pelos seus na pequena aldeia à beira da savana. Ela conhece cada recanto. E ninguém lhe é ali desconhecido. Do mesmo modo, todos os aldeões sabem quem é Djuku:
— Djuku? É aquela que sabe assobiar, melhor até do que um pássaro!
— Quando há por aqui almoço de festa ou de cerimónia, é sempre Djuku quem os faz: ela conhece todas as receitas e até inventa mais!
É verdade que Djuku cozinha galinha como ninguém, mas hoje Djuku vai-se embora. Decidiu partir para longe, muito longe. É que aqui na aldeia, apesar dos amigos, apesar das cerimónias, não há trabalho suficiente.
Fez-se à estrada e fixa os olhos na linha do horizonte para não se voltar, para não chorar. Bem, vamos lá a ver, partir assim é demasiado duro. Então, uma última vez, e antes que a aldeia desapareça na desordem das ervas altas, ela olha-a. Olha-a durante tanto tempo e tão apaixonadamente que todas as coisas onde o seu olhar toca entram no seu corpo.
Agora sim, Djuku pode pôr-se a caminho.
A velha guitarra de Quecuto entra no seu corpo. E com ela todos os perfumes das músicas tantas vezes ouvidas.
A palmeira inclinada e o embondeiro do largo entram no seu corpo.
O caldeirão de Nhô-Nhô entra no seu corpo.
A casa de Pepito entra no seu corpo, apesar do seu tecto desgrenhado.
A barca e as redes de pesca de Benvindo que repousam sobre a areia entram no seu corpo. Sente que todas estas coisas estão dentro dela firmemente atadas como carga de um navio. Sente que, a cada passo dos muitos que dará, a aldeia estará consigo."

 A Viagem de Djuku / Alain Courbel e Éric Lambé. Alfragide: Caminho,

sábado, 19 de setembro de 2020

O livro negro das cores

O livro negro das cores,  da autoria de Menena Cottin e Rosana Faría, que o escreveram e ilustraram dá-nos uma inovadora experiência de leitura. A personagem principal faz uma viagem de descoberta de cheiros, sabores e sons. O texto é-nos apresentado em páginas negras, oferecendo a tradução em Braille. 

O livro tem ainda para oferecer um conjunto de imagens impressas em verniz que podem ser tocadas para construir essa descoberta de um fruto, de um sabor, de uma cor. O livro negro das cores explora essa ideia de que aprendemos e apreendemos com diferentes sentidos e com eles podemos encontrar formas de descobrir o que nos rodeia. Um livro muito bonito para a profundar as palavras, a partir de um objecto, de um fruto, de uma cor e de dar expressão ao que nos rodeia.  

O livro negro das cores oferece uma experiência de leitura feita de grande simplicidade, mas de profundo impacto nos leitores. Nos que sejam invisuais e será nesse aspecto um livro formativo e para todos os outros para essa descoberta de descrição das cores. 

Do amarelo, como algo que sabe a mostarda, ou o castanho que "estala", ou o verde que "sabe a gelado de limão". Não é um livro que tenta construir os sinais dos sentidos para alguém que não vê. Não, é um livro para descobrir e descrever as cores e os sabores, tal como esse negro, onde se desenham flutuantes os objectos. Ler de olhos fechados pode ser uma experiência de descoberta e de compreensão do que rodeia cada um. Um livro muito especial.

  O livro negro das cores / Memena Cotti, il. Rosana Faría. Bruáa: Figueira da Foz, 2010.