quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Leituras


“A partir de então tudo aconteceu muito depressa, como um filme em ritmo acelerado.”

Angela Carter usou uma expressão que podia ser aplicada a muitas histórias infantis e juvenis, justamente “quando os lobos saem das paredes”. Quando olhamos para as histórias há situações de violência, com sentimentos dominantes de vaidade e preconceito. 

Nelas vemos lobos a saltar do inesperado. O capuchinho vermelho ou Harry Potter são exemplos dessa surpresa que irrompe inesperadamente. É um sinal dos tempos, de cada tempo na literatura? Nos livros ainda há uma esperança. O lenhador, ou a inteligência do capuchinho vermelho, conforme as versões. A amizade ou as capacidades individuais de aprender para eliminar Voldemort. No real tudo parece mais difícil.

O dia da memória do Holocausto revela-nos que o impossível chegou a ser possível. Alguns estudos historiográficos recentes mostram que os adultos da máquina nazi tinham tido contacto com histórias de uma clara indiferença para com o sofrimento humano, quando crianças. Coincidência? Não sei. As crenças alicerçadas nas histórias e na tradição às vezes podem ser fatais. Anne Frank acreditava, como os judeus que se tratava de uma prova de coragem do seu deus. 

O tema é relevante e não é uma memória do passado. As sociedades burocráticas baseiam-se na obediência sem questionamento, tal como os nazis mostraram em Nuremberga. Nenhum ideal, apenas o cumprimento de ordens. Para esta memória nada como ler continuadamente e não esquecer.

Um livro sobre o início do pesadelo de quem teve a fortuna de se salvar, escrito com humor, esperança e alegria. Tudo o que precisamos.

Quando Hitler roubou o coelho cor-de-rosa/ Judith Kerr ; trad. e pref. Carla Maia de Almeida. - 1ª ed. - Amadora : Booksmile, 2015.

domingo, 19 de janeiro de 2020

Na memória de Eugénio de Andrade


No dia do seu nascimento, um poeta e um homem que nos ensinou a simplicidade, mesmo que servida às vezes em palavras duras, mas verdadeiras. A pensar nos mais pequenos:

“- É tão bom ser nuvem,
ter um corpo leve,
e passar, passar.
- Leva-me contigo.
Quero ver Granada.
Quero ver o mar.
- Granada é longe,
o mar é distante,
não podes voar.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Na memória de Miguel Torga


Neste dia, a escassos anos do fim do século morria em Coimbra Miguel Torga. De seu nome Adolfo Correia da Rocha, com a profissão de médico, é um dos mais importantes escritores do século XX. Escreveu sob o pseudónimo de Miguel Torga. Miguel, em homenagem a duas figuras da cultura universal, Cervantes e Unamuno. Torga, em homenagem à sua natureza transmontana.

Natural de Sabrosa, distrito de Vila Real, construiu uma obra vasta, variada que abarcou, a poesia, o romance, o conto e as memórias. Fundou várias revistas literárias e publicou, desde 1928, uma extensa obra, podendo–se destacar: Os Bichos, Novos Contos da Montanha, A Criação do Mundo, A Poesia e Os Diários. Recebeu diferentes prémios entre 1969 e 1981 (Diário de Notícias, Poesia de Bruxelas, Prémio Montaigne).

A sua escrita apresenta o encanto silvestre e a originalidade humana desse reino único, muito especial, a que ele deu o nome de maravilhoso. A sua obra e a sua figura são a morada desse tempo quase eterno onde a montanha faz nascer a liberdade e a beleza. É um autor que nos recorda o valor da paisagem e de como ela é uma construção humana. Torga é um exemplo da importância de um território e de uma memória como suportes de uma cidadania formalizada nos valores culturais de uma comunidade. As palavras de Torga são um combate pela liberdade, naquilo que ela tem de valor moral, de consistência civilizacional.

De Miguel Torga muito se podia dizer. Três recursos.
1. Um filme / documentário sobre essa metáfora da sociedade humana que ele fez em Bichos: http://ensina.rtp.pt/artigo/bichos-de-miguel-torga/

2. E da sua obra, aqui que estamos a falar de um público mais jovem, um excerto do conto “Jesus”:
“Comiam todos os caldo, recolhidos e calados, quando o menino disse:
- Sei um ninho!
A mãe levantou para ele os olhos negros, a interrogar. O pai, esse perdido no alheamento costumado, nem ouviu. Mas o pequeno, ou para responder à Mãe, ou para acordar o Pai, repetiu:
- Sei um ninho!
O velho ergueu finalmente as pálpebras pesadas, e ficou atento, também. A criança, então, um tudo-nada excitada, contou. Contou que à tarde, na altura em que regressava a casa com a ovelha, vira sair um pintassilgo de dentro dum grande cedro. E tanto olhara, tanto afiara os olhos para a espessura da rama, que descobrira o manhuço negro, lá no alto, numa galha.
A mãe bebia as palavras do filho, a beijá-lo todo com a luz da alma. O Pai regressou ao caldo.
Mas o menino continuou. Disse que então prendera a cordeira a uma giesta e trepara pela árvore acima.
De novo o Pai levantou as pálpebras cansadas, e ficou tal e qual a Mãe, inquieto, com a respiração suspensa, a ouvir."

3. Um Livro: João Pedro Mésseder conheceu Torga e sob o pedido da sua filha escreveu uma pequena biografia (O meu primeiro Torga) que consegue dar aos mais pequenos os sinais distintos e diversos do que foi um homem excepcional, de frontalidade na procura da liberdade e da expressão de uma beleza sem fim. No fim a solidão de Torga era a solidão de um reino maravilhoso incompreendido sucessivamente por uma maré de janotas sem memória.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Alice no país das maravilhas


«Mas quando ela desapareceu, a irmã deixou-se ficar ali sentada, tranquilamente, de cabeça apoiada na mão, olhando o sol-poente e pensando na pequena Alice e em todas as suas aventuras maravilhosas, até que começou também a sonhar. (...)

Ali ficou sentada, de olhos fechados. Quase acreditou no País das Maravilhas, embora soubesse que, quando voltasse a abri-los, tudo regressaria à enfadonha realidade... Apenas o vento faria sussurrar a erva, e as águas do lago agitar-se-iam com o balouçar dos juncos... O tilintar das chávenas transformar-se-ia no tinir dos chocalhos, e os gritos estridentes da Rainha na voz do jovem pastor...

E os espirros do bebé, o silvo do Grifo e todos os outros estranhos ruídos dariam lugar (ela sabia-o) ao barulho confuso da azáfama que reinava no pátio da quinta, enquanto os mugidos do gado à distância substituiriam os soluços profundos da Falsa Tartaruga.
Por fim, imaginou como esta sua irmãzinha seria no futuro, quando fosse crescida; e como conservaria, já na idade madura, o coração simples e adorável da sua infância, e reuniria à sua volta outras crianças, cujo olhar se tornaria vivo e curioso ao ouvirem tantas histórias estranhas, talvez mesmo a história do sonho do País das Maravilhas, de há muitos anos; e como ela se sentiria no meio das suas tristezas simples e encontraria prazer nas alegrias igualmente simples, ao recordar-se da sua própria meninice e dos dias felizes de Verão.»

Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas, págs. 125-126.

Na lembrança do aniversário do desaparecimento físico de Lewis Carroll, (14 de janeiro de 1898) a memória de um livro eterno, Alice no País das Maravilhas. Alice é a maior personagem da literatura dita infanto-juvenil. Não existe outra personagem como ela. Alice é intemporal e apesar de ela concentrar um tempo, ela revela-se num tempo de fascínio pela infância, por uma delicadeza em que Lewis Carroll quis mostrar o valor das crianças numa sociedade vitoriana que começava a lhes dar maior reconhecimento. De certo modo Alice somos todos nós, a perguntar sobre o que não tem sentido, a desbravar símbolos que não compreendemos, a tentar encontrar um tempo com algum significado. Podemos voltar ao país das Maravilhas? Só muito precariamente, pois os unicórnios não costumam regressar do seu reino de maravilha.
Na memória de Lewis Carroll, um site que nos dá um conjunto de recursos sobre uma personagem intemporal, Alice no país das Maravilhas.

Alice no país das Maravilhas: