segunda-feira, 25 de novembro de 2019

O nome das coisas


Uma viagem para ordenar o real e a própria vida. Ao lê-la nessa pequena maravilha chamada a Minha Primeira Sophia, encontramos Sophia, ela própria na sua viagem com os elementos naturais a procurar um sentido ético a todos os que habitam a terra e o mar. Fernanda Fragateiro conseguiu dar uma cor de azul marítimo, ou de verde das florestas para esses caminhos construídos na dimensão do Ser, isso que tanto a chamou para uma viagem ao nome das coisas. 

"No dia seguinte de manhã eu voltei ao palácio. E o Rei do Mar sentou-me no seu ombro e subiu comigo à tona das águas. Chamou uma gaivota, deu-lhe o frasco com o filtro das anémonas e mandou-a ir à tua procura. E foi assim que eu consegui que tu voltasses.
- Agora nunca mais nos separamos - disse o rapaz.

- Agora vais ser forte como um polvo.
- Agora vais ser sábio como um caranguejo - disse o caranguejo.
- Agora vais ser feliz como um peixe - disse o peixe.
- Agora a tua terra é o Mar - disse a Menina do Mar.
E foram os cinco através de florestas, areais e grutas." (1)


(1) - A minha primeira Sophia / Fernando Pinto do Amaral : il. Fernanda Fragateiro ; rev. Clara Boléo. - 2ª ed. - Alfragide : D. Quixote, 2010. - 44, [1] p. : il. ISBN 978-972-20-3854-6

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Biblioleitores


A palavra "ficção" se a víssemos no seu contexto original, na sua forma de nomeação inicial, logo daríamos conta que ela nos transmite "possibilidade", "hipótese", "criar". As histórias são assim parte de um reino, a chamada Literatura, que se tem definido como algo que designamos "ficção". As histórias são escritas, mas elas permanecem sobretudo como as imagens que cada um, quer dizer, cada leitor conseguiu revelar a si próprio. Imagens que são um património para a nossa própria viagem. 

Nessa viagem de leitores com personagens existirá apenas Literatura, ou poderíamos dividi-la em Literatura para adultos, outra para jovens, outra para crianças? Na verdade e, se ela o for, há apenas Literatura. Formas de nomear as coisas que encontramos no reino do visível, ou de imaginar o impossível, como forma de um real. Há apenas formas de texto literário à sombra do seu próprio tempo.

O real tem-se tornado desfigurado por uma fealdade gritante, um esquecimento óbvio da mais essencial decência. As histórias servem para criar um perfil de aventura, mas também para erigir uma linha de beleza. Às vezes, como por estes dias, o digital e as imagens virtuais criaram um barulho imenso, sinais de uma aparente descoberta. O que mais importa parece ter morrido nas praias do consumo que se esqueceu da linha de um traço, do percurso de uma cor numa flor, ou de uma estrofe de um poema. Temos evidentes dificuldades em chegar ao princípio das coisas, à sua memória. A descontinuação que se assiste é a própria fragilidade de pensar o possível. Nesse sentido todas as histórias, independentemente do seu público são simplesmente Literatura.

Imagem: Copyright - André Neves

sábado, 16 de novembro de 2019

A memória de um menino - Saramago


As histórias para crianças devem ser escritas com palavras muito simples… Quem me dera saber escrever essas histórias…
Se eu tivesse aquelas qualidades, poderia contar, com pormenores, uma linda história que um dia inventei… …seria a mais linda de todas as que se escreveram desde o tempo dos contos de fadas e princesas encantadas…
… havia uma aldeia. …e um menino.
… sai o menino pelos fundos do quintal, e, de árvore em árvore, como um pintassilgo, desce o rio e depois por ele abaixo…
Em certa altura, chegou ao limite das terras até onde se aventurara sozinho. Dali para diante começava o “planeta Marte”. Dali para diante, para o nosso menino, será só uma pergunta: «Vou ou não vou?» E foi. O rio fazia um O rio fazia um desvio grande, afastava-se, e de rio ele estava já um pouco farto, tanto que o via desde que nascera. Resolveu cortar a direito pelos campos, entre extensos olivais, ladeando misteriosas sebes cobertas de campainhas brancas, e outras vezes metendo pelos bosques de altas árvores onde havia clareiras macias sem rasto de gente ou bicho, e ao redor um silêncio que zumbia, e também um calor vegetal, um cheiro de caule fresco.

Ó que feliz ia o menino! Andou, andou, foram rareando as árvores, e agora havia uma charneca rasa, de mato ralo e seco, e no meio dela uma inclinada colina redonda como uma tigela voltada. Deu-se o menino ao trabalho de subir a encosta, e quando chegou lá acima, que viu ele? Nem a sorte nem a morte, nem as tábuas do destino… Era só uma flor. Mas tão caída, tão murcha, que o menino se achegou, de cansado. E como este menino era especial de história, achou que tinha de salvar a flor. Mas que é da água? Ali, no alto, nem pinga. Cá por baixo, só no rio, e esse que longe estava!... Não importa. 

Desce o menino a montanha, atravessa o mundo todo, chega ao grande rio, com as mãos recolhe quanta de água lá cabia, volta o mundo atravessar, pelo monte se arrasta, três gotas que lá chegaram, bebeu-as a flor com sede. Vinte vezes cá e lá… Mas a flor aprumada já dava cheiro no ar, e como se fosse uma grande árvore deitava sombra no chão. O menino adormeceu debaixo da flor. Passaram as horas, e os pais, como é costume nestes casos, começaram a afligir-se muito. Saiu toda a família e mais vizinhos à busca do menino perdido. E não o acharam. Correram tudo, já em lágrimas tantas, e era quase sol-pôr quando levantaram os olhos e viram ao longe uma flor enorme que ninguém se lembrava que estivesse ali. Foram todos de carreira, subiram a colina e deram com o menino adormecido. Sobre ele, resguardando-o do fresco da tarde, estava uma grande pétala perfumada…

Este menino foi levado para casa, rodeado de todo o respeito, como obra de milagre. Quando depois passava pelas ruas, as pessoas diziam que ele saíra da aldeia para ir fazer uma coisa que era muito maior do que o seu tamanho e do que todos os tamanhos. Este era o conto que eu queria contar. Tenho muita pena de não saber escrever histórias para crianças. Mas ao menos ficaram sabendo como a história seria, e poderão contá-la doutra maneira, com palavras mais simples do que as minhas, e talvez mais tarde venham a saber escrever histórias para crianças… 

Quem sabe se um dia virei a ler outra vez esta história, escrita por ti que me lês, mas muito mais bonita?...
José Saramago. A maior flor do mundo. Ilustrações de André Letria.

Fundação José Saramago. 2013.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Figuras imaginárias...

 É uma menina! - respondeu Felge, todo entusiasmado, pondo-se em frente de Alice para a apresentar, e estendendo ambas as mãos para ela, numa atitude muito anglo-saxónica.
- Encontrámo-la hoje. É a sério e muito verídica.
   - Sempre pensei que elas fossem monstros fabulosos!
- exclamou o Unicórnio. - Está viva?
   - Pode falar - disse Felge, solenemente.
   O Unicórnio olhou incrédulo para Alice, e pediu-lhe:
   - Fala menina.
   Alice não pôde evitar um sorriso, ao dizer:
   - Sabes, eu também pensava que os Unicórnios eram monstros fabulosos! Nunca tinha visto um vivo!
   - Bem, agora já nos vimos um ao outro - constatou o Unicórnio. - Se acreditares em mim, eu acredito em ti. De acordo? (1)

   Ken Robinson contava muitas vezes nas suas palestras sobre criatividade e sistema educativo uma história deliciosa que tinha acontecido numa escola de primeiro ciclo de um estado americano da costa leste. Uma menina que se costumava envolver pouco nas atividades da educadora e que com alguma frequência se distraia, estava num dado dia envolvida na atividade proposta. A educadora curiosa pela mudança foi ter com ela e perguntou-lhe:
   - o que estás a desenhar?
   E a criança respondeu:
   - estou a desenhar o rosto de Deus.
   Ao que a educadora respondeu:
   - mas nunca viu o rosto de Deus. Ninguém sabe como é Deus. Ao que a criança respondeu:
   - daqui a um minuto todos saberão. 

   É uma história incrível sobre essa capacidade de ver cada desafio e olhar cada possibilidade como um real capaz de ser vivido, ensaiado ou simplesmente imaginado. A literatura, quando pensamos nela lembramos os seus autores. Pensamos em Sophia, em Mia Couto, em Eça de Queirós e em muitos outros. Mas, na verdade o que a literatura mais nos concede, aquilo que ela eterniza são as personagens das histórias, os grandes aventureiros, como Peter Pan, Alice, Harry Potter,  Huckleberry Finn ou Tintim. Eles são os grandes viajantes da aventura, essa que se reinicia sempre e de modo diferente em cada um. É por demais evidente que Alice está mais presente que Lewis Carroll e até Flaubert lamentava-se tantas vezes que ele não sobreviviria na memória e, neste caso na vida de cada um, como os leitores de Madame Bovary.

(1) - Alice do outro lado do espelho / Lewis Carroll : trad. Vera Azancot ; il. John Tenniel. - Mem-Martins : Publicações Europa-América, 2010. - 153, [3] p. : il. ; 22cm. - (Clássicos). Tít. orig.: Through the Looking Glass. - ISBN 978-972-1-06074-6

Imagem: Copyright - Robert Dunn

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Primeira folha


"Viajando no mundo das maravilhas
 esquecidas dos dias que passam 
demorando-se no brilho da luz..." (1)

Era uma ideia antiga. O conhecimento e o contacto com crianças mais pequenas, entre diferentes bibliotecas fez-me conhecer, talvez antes reconhecer melhor o que é a imaginação servida no quotidiano. Verifiquei que nesse universo, há uma emoção muito própria, uma linguagem diferente, singular, que se serve das imagens e dos objetos para caminhar entre os sorrisos, numa viagem onde a fantasia responde a todas as dúvidas. 

É o reino da literatura infantil e juvenil, onde o tempo está ainda preso pelo vento e as manhãs sorriem ao sol, por caminhos, estradas e mares onde cada figura nos conduz por entre as searas e as urzes. E nelas achamos as mais fantásticas figuras, sempre a sonhar com a maior das aventuras.

Caderno de aventuras é uma simples ideia, nem sequer original, realizada em diferentes endereços e suportes por outros, há mais tempo, com mais experiência, mas com uma igual vontade de falar sobre o encanto fantástico da infância. Este caderno procura ser uma ilustração de aventuras, uma admiração pelo sonho dos que viajam na imaginação e uma janela aberta aos beijos que entram pela cor e traço dos escritores, ilustradores, poetas e músicos.

A entrada numa formação dita mais especializada neste domínio fez-me interessar por descobrir estes mundos cheios de palavras pequenas, grandes emoções e cores vivas para revelar outros mundos. Caderno de aventuras não pretende ser um blog especializado sob a área da literatura para a infância e juventude, mas apenas um olhar admirado, assombrado sobre algo que é um fascínio, essa doçura sobre o conto infantil e juvenil, de quem não parecendo saber muito tem algumas respostas,  e sobretudo perguntas infinitas. Aventuras de peixes e borboletas, "num mundo de maravilhas", onde crianças, objetos e fadas enfeitam o jardim das histórias. E, sobretudo parece-me no momento a melhor forma de encontrar outros reinos fora desta fealdade chamada real.

(1) Lewis CarollAlice do outro lado do espelho