sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Na memória de Miguel Torga


Neste dia, a escassos anos do fim do século morria em Coimbra Miguel Torga. De seu nome Adolfo Correia da Rocha, com a profissão de médico, é um dos mais importantes escritores do século XX. Escreveu sob o pseudónimo de Miguel Torga. Miguel, em homenagem a duas figuras da cultura universal, Cervantes e Unamuno. Torga, em homenagem à sua natureza transmontana.

Natural de Sabrosa, distrito de Vila Real, construiu uma obra vasta, variada que abarcou, a poesia, o romance, o conto e as memórias. Fundou várias revistas literárias e publicou, desde 1928, uma extensa obra, podendo–se destacar: Os Bichos, Novos Contos da Montanha, A Criação do Mundo, A Poesia e Os Diários. Recebeu diferentes prémios entre 1969 e 1981 (Diário de Notícias, Poesia de Bruxelas, Prémio Montaigne).

A sua escrita apresenta o encanto silvestre e a originalidade humana desse reino único, muito especial, a que ele deu o nome de maravilhoso. A sua obra e a sua figura são a morada desse tempo quase eterno onde a montanha faz nascer a liberdade e a beleza. É um autor que nos recorda o valor da paisagem e de como ela é uma construção humana. Torga é um exemplo da importância de um território e de uma memória como suportes de uma cidadania formalizada nos valores culturais de uma comunidade. As palavras de Torga são um combate pela liberdade, naquilo que ela tem de valor moral, de consistência civilizacional.

De Miguel Torga muito se podia dizer. Três recursos.
1. Um filme / documentário sobre essa metáfora da sociedade humana que ele fez em Bichos: http://ensina.rtp.pt/artigo/bichos-de-miguel-torga/

2. E da sua obra, aqui que estamos a falar de um público mais jovem, um excerto do conto “Jesus”:
“Comiam todos os caldo, recolhidos e calados, quando o menino disse:
- Sei um ninho!
A mãe levantou para ele os olhos negros, a interrogar. O pai, esse perdido no alheamento costumado, nem ouviu. Mas o pequeno, ou para responder à Mãe, ou para acordar o Pai, repetiu:
- Sei um ninho!
O velho ergueu finalmente as pálpebras pesadas, e ficou atento, também. A criança, então, um tudo-nada excitada, contou. Contou que à tarde, na altura em que regressava a casa com a ovelha, vira sair um pintassilgo de dentro dum grande cedro. E tanto olhara, tanto afiara os olhos para a espessura da rama, que descobrira o manhuço negro, lá no alto, numa galha.
A mãe bebia as palavras do filho, a beijá-lo todo com a luz da alma. O Pai regressou ao caldo.
Mas o menino continuou. Disse que então prendera a cordeira a uma giesta e trepara pela árvore acima.
De novo o Pai levantou as pálpebras cansadas, e ficou tal e qual a Mãe, inquieto, com a respiração suspensa, a ouvir."

3. Um Livro: João Pedro Mésseder conheceu Torga e sob o pedido da sua filha escreveu uma pequena biografia (O meu primeiro Torga) que consegue dar aos mais pequenos os sinais distintos e diversos do que foi um homem excepcional, de frontalidade na procura da liberdade e da expressão de uma beleza sem fim. No fim a solidão de Torga era a solidão de um reino maravilhoso incompreendido sucessivamente por uma maré de janotas sem memória.

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